Criança adulta

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Nós adultos gostamos de nos sentir saudosistas em relação à nossa infância, sempre nos referindo à melhor fase da vida. A infância é tida como aquele estágio do desenvolvimento em que há total descomprometimento, sendo a brincadeira a principal ocupação. Lembramos dos brinquedos que fizeram sucesso, das roupas, da escola, da comida preferida. Na nossa memória de adultos, não precisávamos nos preocupar em ganhar dinheiro ou pagar contas e tínhamos certeza de que a mamãe cuidaria de tudo, caso alguma coisa saísse errado. Só que sabemos que não foi para todos os adultos.

Dia desses, saindo do trabalho entrei na cafeteria onde habitualmente faço algumas refeições, para o lanche do final da tarde. Posteriormente, eu iria me dirigir a um espetáculo de música (que não fazia muita ideia do que se tratava) e, como não daria tempo para retornar a casa, resolvi lanchar por ali mesmo. Já com as cadeiras em cima das mesas, a atendente serviu meu pedido por me considerar uma cliente fidelizada, e se pôs a limpar o chão. Enquanto finalizava seu expediente, surgiu a conversa.

- Não que não seja digno limpar o chão! Mas não é esse o futuro que desejo para meu filho. Incentivo muito para ele estudar, fico em cima dos cadernos dele e sempre estou na escola, quando me chamam. Para a gente que não estudou, às vezes fica até difícil conversar. Não entendo muito o que as pessoas dizem. - disse a senhora.
- Quantos anos tem seu filho? - perguntei.
- Ele tem doze e a menor tem seis. Digo a ele que, quando eu estou fora, ele é quem fica responsável pela casa e pela irmã menor, de seis anos. Ensino tudo a meu filho, porque não quero que ele dependa de ninguém, a gente nunca sabe o que pode acontecer. Já ensinei a cozinhar e a cuidar dele mesmo. - afirmou.

Após algum tempo exercitando diariamente a profissão, fica difícil não ouvir o que está por trás das palavras proferidas pela atendente naquela conversa. Fiquei me perguntando quando é que aquele menino, experimentando a transição entre infância e adolescência aos doze anos, teria tempo para ser ele mesmo, de acordo com sua idade. Inquestionável a necessidade de os pais trabalharem para o sustento da família, mas me perguntei qual será a lembrança que este menino, responsável, terá destes dias. Fiquei pensando sobre a infância dos vários adolescentes que atendo no trabalho e que, muitas vezes, foi reduzida à somente alguns poucos anos... Talvez oito, nove ou dez.

Saindo dali fui em direção ao espetáculo de música, que me trouxe mais uma surpresa. Era um show realizado pelos estudantes, crianças e adolescentes, de uma escola de música de classe média-alta da cidade. Avós, dindos e dindas, pais e mães, irmãos, todos ali para apreciarem os feitos musicais de seus pequenos, cuja realidade social e econômica é oposta à do filho da atendente de lanchonete. Entre uma apresentação e outra, a produção do show musical preparou um vídeo em que os alunos davam depoimentos sobre suas experiências de vida e a relação com a escola de música. A espontaneidade e simplicidade dos menores é unânime, independente da classe social. E a adultez também, ao que me pareceu. Algumas falas me soaram um tanto estranhas, como uma menina que aparentava doze - mas cuja idade real devia ser uns dez ou onze anos - e que dizia desejar um carro! Não um carro de brinquedo; um carro de verdade, que ela pudesse dirigir, mesmo consciente da impossibilidade devido à idade. E outro adolescente, mais ou menos com seus quatorze anos, que falava como um jovem universitário, de dezoito. E mais outra menina que discursou belissimamente sobre a valorização da vida e como lidar com problemas de modo bem natural. Acredito que nada muito distante do que diria aquele menino, filho da atendente da lanchonete, que tinha a responsabilidade de um jovem adulto de vinte anos. 

Qual é o espaço que sobra para a infância em um mundo de espetáculos, que convida insistentemente crianças e adolescentes ao consumo, ao pensamento crítico e esclarecido? Pareceu-me que até as próprias crianças invalidam  a infância, com seus discursos tão bem elaborados. Qual é o espaço para a curiosidade, para a autodescoberta, para o brincar lúdico e livre, para o exercício do convívio social com outras crianças, para o exercício da diferenciação do adolescente, que não seja somente aquele proporcionado pelas instituições de ensino? E quanto custa aos pais doarem seu tempo para brincadeiras e cuidado? Como podemos deixar as crianças serem o que são, no tempo de vida em que estão? Por que a necessidade de torná-las mini-adultas?

Infância e adolescência é o momento de crescer fisicamente, de desenvolver habilidades cognitivas e sociais e de maior cuidado. Crianças e adolescentes requerem atenção e presença de cuidadores, muita paciência e muito afeto. A necessidade de conforto e de segurança física e emocional é fundamental, mas não deveria ser de suas única responsabilidade. E a principal tarefa dos pais é construir e reinventar esta infância e adolescência, que se modifica a cada geração, junto de seus filhos.

Assim como a maioria dos convidados para o espetáculo, somada à conversa com a atendente da lanchonete, saí do teatro emocionada, pois ao assisti-los, novamente me dei conta do quanto eles tem a nos ensinar, como dizia uma orientadora de estágio clínico. Tão pequenos e simples. Tão sábios, para aqueles que estiverem atentos ao escutá-los.

Shirley Silva Costa
Psicóloga | CRP 07/27644

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